Considero-me uma pessoa bastante positiva, energética, activa. Quem me conhece dirá que gosto de ir à luta, que não consigo ficar quieta, que sou muito bem-disposta.
Apesar de reconhecer o estado calamitoso do meu país, dos meus conterrâneos e do espírito que nos envolve, sempre considerei que, se eu fizesse a minha parte, o universo trataria do resto. Isto é, tenho em crer – ou tinha – que se eu trabalhasse o suficiente, se me esforçasse para demonstrar o que valho, se mostrasse que tenho vontade, o resto acabaria por acontecer, as oportunidades acabariam por surgir, por muito que não soubesse sequer quais as que desejo mesmo seguir. Ora, confesso agora que se trata de uma visão bastante inocente e básica do mundo. Começo sim a aperceber-me que se trata de um mundo muito injusto, ocasional e gerido por todos menos aqueles que o deveriam gerir! Neste mundo andamos uns a carregar e outros a ser carregados.
À medida que escrevo estas palavras apercebo-me da sua crueza e de como ficam feias no ecrã; mas recuso-me a embelezá-las porque já ando a matutar nelas há algum tempo. Sinto que já me apropriei delas, é a minha visão, a de burro de carga, e por isso não a mudo. Ao fazer parte de uma geração desnorteada a nível mundial sinto-me ainda mais perdida, sem eira nem beira num barco sempre a abanar. Embora saiba dos milhões de pessoas que partilham a minha precariedade no emprego, o meu desencanto com o mundo, o meu isolamento dos meus pares, tudo isso serve apenas para me fazer sentir ainda mais só. Não é que me sinta só no geral. Tenho apenas momentos em que me sinto isolada, por muito que corra para que isso não aconteça. Vou para aqui, vou acolá, marco isto e mais aquilo; faço contactos, pergunto como está tudo, mas parece sempre que a vida de cada qual se impõe e acaba por ser sempre difícil, quer tente, quer fique sentada no sofá a ver uma série. Com todos os acessos e facilidades temos sempre uma panóplia de actividades à nossa disposição, mas ao mesmo tempo estamos igualmente mais dispersos e não temos tanta consistência a nível de encontros. Curiosamente, acabamos por marcar as nossas rotinas através do nosso emprego, por muito que nos dias em que correm tanto se ouça falar da separação entre o pessoal e o profissional, da necessidade de criar tempo para o lazer. Ora, se o conjunto de amigos se dispersa nas horas de lazer, acabamos por nos juntar e proporcionam-se as actividades em conjunto com aqueles com quem comunicamos todos os dias. Isso parece-me muito estranho, não sei bem porquê. Lá está, muito inocentemente, sempre acreditei que as coisas se manteriam iguais, que os meus cafezinhos fossem tão fáceis como quando morávamos todos a cem metros e saíamos de casa com apenas as chaves no bolso porque lá se haveria de encontrar alguém na pastelaria. Mas tudo muda. E tudo muda do dia para a noite, sem que tenha tempo sequer de me despedir desses dias.
No decurso da minha leitura mensal da Courrier Internacional deparei-me com um artigo que subscrevo a todos com a minha idade. Tratava-se de um artigo sobre a tentativa de reconhecimento de um novo estádio de desenvolvimento da vida humana, que se aplica principalmente às culturas ocidentais. Os sociólogos perguntam-se por que é a passagem para a vida adulta se faz tão tarde agora e surge o estádio da “vintena”, ou a “idade adulta emergente”. Trata-se de dossiê sobre este tema cuja passagem que passo a citar é bastante esclarecedora daquilo que tento explicar “Na opinião de (Jeffrey Jensen) Arnett, os adultos emergentes têm um perfil psicológico especial: exploração de identidade, instabilidade, egocentrismo, sensação de estar entre dois mundos e uma característica assaz poética, a que dá o nome de ‘sentido dos possíveis’”. Descrevia palavra a palavra o sentimento que me assolou assim que acabei a minha defesa do relatório de estágio, apenas há dois anos atrás. Para começar, para mim parece que já foi há mais de cinco anos; sinto que já fiz tanto, e ao mesmo tempo não alcancei nada. Sei agora que naquele momento, os sonhos a que tanto ainda hoje me agarro simplesmente deixaram de ter significado. De repente, tornou-se tudo tão real, que a simplicidade do que mais almejava pareceu-me ridícula e infantil, pelo que agora quase que me recrimino quando os considero. Trata-se de uma confusão interna muito triste, muito pesada que ficou demasiado atordoante para uma pessoa que vê sempre o copo meio cheio. Até àquele momento tinha o meu percurso muito bem delineado, pensado até mesmo ao pormenor de alternativas para o caso de algum azar.
Mas a maior falácia do plano foi a sua duração, esqueci-me de planear para depois. Voltando agora ao que disse acima, pensava que as coisas iriam acontecer, que o meu valor seria reconhecido e que poderia aproveitar o tempo entre estar parada e a “oportunidade” para aproveitar a vida. Acontece que o universo não se revelou, a minha vida continuou a andar e a minha cabeça sempre a disparar. Descobri que não tenho jeito para “aproveitar” a vida e os seus “entretantos”. Quando tenho que simplesmente relaxar, o meu cérebro trabalha mais do que em modo de stress de final do ano e acaba por levar-me ao desespero. Embora tenha trabalho e até consiga atingir pequenas metas que estabeleço, o que me persegue é sempre este sentimento de que nunca poderei sentir-me realizada sem um emprego que me descreva, que me fascine, que me faça levantar todos os dias com um sorriso. Esta é a minha visão inocente.
E não consigo largá-la. Já tentei abafá-la, dar-lhe uma caixinha própria, cheia de autocolantes amarelos e luas e animais fofos. Já a escondi debaixo de férias, massagens e conversas, mas está sempre lá, quietinha, à espera de atacar assim que páro cinco minutos a contemplar o ar que não respirei.
Se me perguntarem se sou feliz direi que sim, orgulho-me de ter muitos momentos de felicidade no meu caderninho de eventos, e sei que terei ainda muitos mais à minha espera. Simplesmente sempre pensei que seria definida e valorizada pelo trabalho que fizesse. Sei bem que não sou só eu que penso isso, vejo essa noção na cara de todos os que me tratam com pena cada vez que me perguntam o que faço. Reconheço sempre os possíveis pensamentos: “pois, não escolheste muito bem o curso”, “pois, foste para línguas”, “deverias ter pensado mais à frente”, “é mesmo pena, davas-te tão bem na escola”, e um sem fim de outros tantos. Eu própria já cheguei a duvidar desta minha insistência, deste meu apego a algo que tão pouco me compensa. E continuo sem chegar a conclusão alguma. Sei do que gosto, ponto final. Sei que gosto de ler, de palavras, de letras, de palavras que soem bem, mesmo que não entenda o seu significado, sei que adoro ler uma frase e escrevê-la de outra forma para ver se consigo dizer o mesmo. Essa é a base do meu espírito e espero bem que nunca mude. Deixei de ter pena disso, deixei de querer gostar de números e de computadores, e de imagens, e de programas e tudo aquilo mais que faz parte da nossa realidade. Se existe algum lugarzinho perfeito no mundo para mim, com um grupinho de pessoas adoráveis e estimulantes, com um recurso didáctico incrível e com um rendimento confortável, espero um dia vir a encontrá-lo. Mas caso isso não aconteça, quero antes de tudo deixar de me lamentar. Quero deixar este pesar que pelos vistos partilho com a minha geração e deixá-lo perder-se no tempo da minha memória. Por isso mesmo decido hoje pegar o touro pelos cornos e voltar a ter a coragem para dizer aquilo que me vem à cabeça.
Hoje deixei de ligar a quem quer saber, quem não quer saber, quem encontra ou não encontra, se tem um typo ou falhou um espaço. Se estiver chateada estou, se estiver feliz, assim seguirei! O touro é meu, os cornos igualmente, por isso a quem me quiser “ouvir”, aqui estou eu! Uma cabecinha à deriva cheia de palhaçadas para partilhar!